A partir de conhecimentos obtidos nas últimas décadas sobre o eixo microbiota-intestino-cérebro, que descrevem as complexas vias de comunicação bidirecional que ligam o sistema nervoso central (SNC) ao microbioma intestinal, os estudos em animais e humanos passaram a documentar evidências robustas do papel crucial desse microscópico ecossistema para a regulação da homeostase, o desenvolvimento cognitivo e o próprio comportamento do sistema nervoso. Com os avanços tecnológicos no campo da biomedicina, os cientistas passaram a associar a disbiose intestinal à gênese ou à progressão de uma variedade de distúrbios neuropsiquiátricos, a exemplo de esclerose múltipla, doença de Parkinson, doença de Alzheimer, depressão e ansiedade. Mais recentemente, as mudanças na composição ou na função do microbioma intestinal passaram a ser associadas à epilepsia, particularmente à forma refratária aos medicamentos.
De acordo com uma revisão científica publicada em 2022 no periódico Epilepsia Open, estudos com animais e humanos mostram evidências que apoiam a disbiose como um fator causador da epilepsia. Os autores afirmam que existem cinco possíveis rotas de comunicação entre a microbiota intestinal e o cérebro, que incluem conexões neurais, o eixo hipotálamo-pituitária-adrenal (HPA), a biossíntese de neurotransmissores por bactérias intestinais, o sistema imunológico intestinal e a interconexão entre a barreira da mucosa intestinal e a barreira hematoencefálica. No Brasil, pesquisadores também têm se dedicado a entender o papel da microbiota intestinal na patogênese da epilepsia. Um dos estudos investigou a relação da microbiota com o processo inflamatório relacionado à doença.
Desenvolvida em 2021 por um grupo de pesquisadores do Instituto de Ciências Básicas da Saúde da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), a pesquisa teve como objetivo analisar a composição taxonômica da microbiota intestinal de ratos tratados com prednisolona em um modelo animal de epilepsia. Além disso, buscou compreender os mecanismos relacionados ao processo de neuroinflamação que interferem na epileptogênese. “A epilepsia é uma doença complexa, incluindo crises focais, generalizadas, combinadas e de origem desconhecida. Suas causas abrangem fatores estruturais, genéticos, infecciosos, metabólicos, imunes e desconhecidos. Sobre o sistema nervoso central há inúmeras pesquisas em andamento, mas o nosso grupo foi pioneiro em investigar a relação da microbiota intestinal e os processos inflamatórios que podem estar associados à epilepsia”, afirma a professora associada e pesquisadora do Laboratório de Neuroimunologia do Departamento de Microbiologia, Imunologia e Parasitologia (ICBS) da UFRGS, Adriana Simon Coitinho. A docente coordena um grupo de pesquisa em epilepsia e coorientou a tese de doutorado ‘Relação da microbiota intestinal com processos inflamatórios desencadeadores de epilepsia em modelo animal’, da bióloga Amanda Muliterno Domingues Lourenço de Lima, publicada em 2022 no periódico Microbial Pathogenesis.
Dentre outras investigações, o grupo da UFRGS induz crises epilépticas em animais para analisar o processo inflamatório relacionado à doença. “É consenso que a crise epiléptica desencadeia uma neuroinflamação em nível cerebral. Mas também já sabemos que processos inflamatórios, por sua vez, podem ser gatilho para crises epilépticas. A microbiota também atua nessa modulação do processo inflamatório intestinal, por meio do eixo intestino-cérebro”, acentua a professora. Assim, a modulação da microbiota poderia atuar nesse metabolismo promovendo a formação de alguns substratos, entre os quais o ácido gama-aminobutírico (GABA, na sigla em inglês). Esse neurotransmissor é um mensageiro químico que transmite informações de um neurônio para o outro, regulando o sistema nervoso.
Seguimento – Ao dar continuidade ao estudo, a pesquisadora Amanda Muliterno Domingues Lourenço de Lima investigou a relação da microbiota com os processos inflamatórios em modelo animal induzido por pentilenotetrazol (fármaco utilizado para indução química das crises epilépticas). Nesta pesquisa, 40 animais foram divididos em quatro grupos: controle negativo (receberam cloreto de sódio), controle positivo (tratados com diazepam, fármaco usado no controle de crises epilépticas), e dois grupos testes tratados com prednisolona (anti-inflamatório esteroidal), em diferentes concentrações. “Fizemos a análise comportamental dos animais, avaliamos graus de severidade das crises epilépticas e o tempo da latência. A partir da administração deste indutor, percebemos que a prednisolona se mostrou um fármaco com potencial efeito na redução e na severidade dessas crises”, detalha. O artigo ‘Effect of prednisolone in a kindling model of epileptic seizures in rats on cytokine and intestinal microbiota diversity’ foi publicado em 2024 no periódico Epilepsy & Behavior.