O microbioma intestinal é o mais importante do corpo humano e estudos confirmam sua influência em diferentes órgãos e sistemas
Cientistas de inúmeros países, incluindo o Brasil, trabalham para identificar o papel do microbioma intestinal humano e sua influência na saúde e na doença. Nos últimos anos, graças ao desenvolvimento de estudos metagenômicos sofisticados e ao acesso a técnicas inovadoras, os pesquisadores têm conseguido entender melhor as interações entre esse microbioma formado por trilhões de bactérias, fungos, vírus e arqueas (organismos unicelulares procariontes) e seu envolvimento em muitos processos biológicos básicos, como regulação do desenvolvimento epitelial, modulação do fenótipo metabólico e estimulação da imunidade inata. Além disso, os estudos avaliam as influências ambientais e dietéticas nas interações microbianas e, mais recentemente, o papel do eixo cérebro-intestino-microbiota para o desenvolvimento de doenças neurodegenerativas e neuropsiquiátricas, assim como nos distúrbios do neurodesenvolvimento como o transtorno de espectro autista.
Cada vez mais evidências confirmam que esse complexo ecossistema produz metabólitos, moléculas de sinalização, proteínas, peptídeos, polissacarídeos, ácidos nucleicos (DNA estrutural e RNA), elementos genéticos móveis, toxinas, moléculas orgânicas e inorgânicas que determinam uma série de atividades no organismo. Sem os microrganismos que compõem a microbiota intestinal o ser humano não poderia sobreviver, porque são fundamentais para a conversão dos componentes indigeríveis, regulação energética, síntese de vitaminas, produção de ácidos graxos de cadeia curta (AGCC), proteção contra patógenos e modulação do sistema imune. Embora a ciência já tenha conseguido identificar inúmeras conexões do microbioma intestinal com diferentes enfermidades, os pesquisadores seguem descobrindo novas funções e contribuições desse universo microbiano para melhorar a saúde, contribuir com tratamentos, auxiliar em diagnósticos e prevenir doenças.
O intestino é a maior superfície de contato do corpo com o ambiente externo e, se aberto, tem o tamanho de uma quadra de tênis (cerca de 260m2). Com vários papéis que extrapolam o da absorção de água e nutrientes, o órgão é considerado um laboratório vivo, porque as bactérias presentes na microbiota intestinal estão se comunicando o tempo todo e fazem parte de uma comunidade complexa. “Quando falamos em microbiota pensamos em bactérias, mas temos de lembrar dos fungos, que representam cerca de 1% desse ambiente, das arqueas e dos vírus. O viroma intestinal, aliás, é gigante e tem sido estudado mais recentemente, por isso, ainda não sabemos trabalhar muito bem com ele”, explica o professor titular do Departamento de Clínica Médica da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e do Serviço de Gastroenterologia e Laboratório Multidisciplinar de Pesquisa da Instituição, Heitor Siffert Pereira de Souza.
Cada ser humano tem uma microbiota intestinal única, como uma impressão digital, que se forma a partir do nascimento, ganha características específicas de acordo com o tipo de parto e o tempo de amamentação, e permanece relativamente estável ao longo da vida em indivíduos sadios. Entretanto, fatores como idade, uso excessivo de antibióticos, estresse e alimentação, podem interferir na qualidade da microbiota e trazer consequências para a saúde. Estudos recentes também sugerem que o desenvolvimento da microbiota intestinal é influenciado por fatores biogeográficos humanos como raça, etnia, estilo de vida ou variações específicas da cultura e outras influências ambientais. Muitas evidências demonstram que a desregulação permanente (disbiose) desse ambiente pode alterar as respostas imunológicas, o metabolismo, a permeabilidade intestinal e a motilidade digestiva, levando o organismo a um estado pró-inflamatório que favorece o aparecimento de doenças metabólicas (como diabetes e obesidade), digestivas, neurológicas, autoimunes e até mesmo neoplásicas.
Mais de 1,5 mil espécies compõem a microbiota intestinal, distribuídas por cerca de 50 filos diferentes que correspondem a 90% desse ambiente, com destaque para Fusobacteria, Verrucomicrobia, Actinobacteria, Tenericutes, Proteobacteria, Bacteroidetes e Firmicutes – os dois últimos considerados mais representativos. Apesar desse conhecimento, ainda há dúvidas para determinar o que seria um padrão de eubiose (harmonia entre as espécies de bactérias presentes neste ambiente) intestinal. O pediatra imunologista Bruno Paes Barreto, professor de Pediatria do Centro Universitário do Estado do Pará e membro do Departamento Científico de Alergia na Infância e Adolescência da Associação Brasileira de Alergia e Imunologia (ASBAI), ressalta que a ciência não sabe definir o que é a microbiota ideal porque não tem como estabelecer esse padrão.
“Claro que alguns microrganismos são considerados mais saudáveis ou têm uma função mais interessante do que outros, no entanto, cada indivíduo tem a própria identificação microbiana e não é fácil estabelecer um padrão. O que imaginamos que vem acontecendo ao longo de séculos é uma perda gradual da diversidade microbiana, porque a sociedade moderna traz características ruins como parto por via cesariana, alimentação mais industrializada, pasteurizada e ultraprocessada, e uso de antibióticos em excesso que matam as bactérias do bem”, detalha. Para o pediatra, todas essas variáveis podem justificar a pandemia de doenças crônicas não transmissíveis e não infecciosas registradas atualmente, como alergias, diabetes e doenças inflamatórias. E isso pode estar ocorrendo devido a uma microbiota mal instalada ao longo dos séculos, à perda de diversidade e a uma interferência no desenvolvimento imunológico, metabólico e neurológico.
O professor Heitor Siffert Pereira de Souza acrescenta que condições disbióticas prolongadas, caracterizadas pelo aumento de cepas agressivas e diminuição de espécies regulatórias no intestino, resultam em disfunção da resposta imunitária da mucosa. Juntamente com uma barreira intestinal defeituosa, a disbiose pode sustentar a inflamação da mucosa e, potencialmente, levar ao desenvolvimento de enfermidades como as doenças inflamatórias intestinais, por exemplo. “A disbiose pode se consolidar como peça fundamental na etiopatogenia de algumas doenças, mas também pode representar uma oportunidade para maior precisão em tratamentos futuros mais individualizados, possivelmente baseados na manipulação dessa microbiota e de seus produtos ou da sua interação com o hospedeiro”, acentua.