O tratamento farmacológico da epilepsia funciona bem para a maioria dos casos. Entretanto, cerca de 30% dos pacientes apresentam crises refratárias ou farmacorresistentes, descritas pela ausência de resposta ao tratamento com dois ou mais medicamentos antiepilépticos corretamente indicados e bem tolerados para conseguir o controle das crises de forma sustentada. Estes casos impactam negativamente a qualidade de vida, com implicações como atraso no desenvolvimento das crianças, aumento do absenteísmo, lesões físicas durante uma convulsão, piora da memória ou outras habilidades de pensamento, isolamento social, declínio cognitivo progressivo, depressão e, em casos mais raros, morte súbita inesperada em epilepsia. De acordo com os especialistas, para estes casos específicos existem outras abordagens que podem reduzir tais impactos, a exemplo do tratamento cirúrgico, da prescrição da cannabis medicinal e da terapia cetogênica (leia mais na matéria de Saúde).
Opções cirúrgicas devem fazer parte do arsenal de tratamento de epilepsia para os casos refratários, pois têm como objetivo interromper as crises ou limitar sua gravidade. Segundo o neurocirurgião Walter Fagundes, PhD em Neurocirurgia e professor da Universidade Federal do Espírito Santo (UFES), quando bem indicada, a cirurgia ajuda a melhorar a qualidade de vida do paciente com o controle adequado das crises e a redução do uso das medicações antiepilépticas. “Para avaliar se a cirurgia é a melhor opção, o paciente deve realizar uma série de exames como ressonância de crânio, eletroencefalograma, vídeo-eletroencefalograma e avaliação neuropsicológica para localizar a área afetada e excluir diagnósticos alternativos, como eventos não epilépticos que, embora se pareçam com as crises, não apresentam descargas elétricas cerebrais anormais”, descreve.
Mais comum entre os procedimentos disponíveis, a cirurgia de ressecção focal é uma opção funcional e curativa para cerca de dois terços dos pacientes. A técnica consiste na remoção de uma pequena parte do cérebro sem afetar as estruturas adjacentes. “Com técnicas microcirúrgicas precisas, o cirurgião corta tecidos cerebrais na área epileptogênica, ou seja, onde ocorrem as convulsões, que geralmente é no local de um tumor, de lesão cerebral ou malformação. Frequentemente, essa cirurgia é realizada em um dos lobos temporais, uma área mais segura do cérebro que não compromete funções motoras ou cognitivas”, orienta o neurocirurgião. Outra opção é a hemisferectomia, uma intervenção recomendada para casos mais graves em que existe um amplo envolvimento de um determinado hemisfério cerebral, no qual é feita a desconexão do hemisfério doente com o sadio e a ressecção da região que potencializa as crises epilépticas.
Outra modalidade são as cirurgias neuromodulatórias que utilizam estimulação elétrica ou magnética, induzindo modificações de curto e longo prazos nos circuitos do sistema nervoso. Apesar de não serem curativos, esses procedimentos são capazes de reduzir tanto a intensidade quanto a incidência das crises. Pouco invasiva, a terapia de Estimulação do Nervo Vago (VNS, na sigla em inglês), por exemplo, é indicada para pacientes de qualquer idade com epilepsia refratária, focal ou generalizada por dois ou mais anos. “A técnica consiste em um eletrodo delicado inserido cirurgicamente ao redor do nervo vago na região do pescoço, que é conectado a um gerador implantado sob a pele logo abaixo da clavícula. Esse eletrodo é como um marca-passo neurológico e envia sinais elétricos para estimular o nervo vago cervical, permitindo a modulação e o controle dos impulsos elétricos irregulares e, assim, evitando as crises epilépticas”, detalha o neurocirurgião Walter Fagundes.
Como qualquer outro procedimento cirúrgico, tais abordagens apresentam riscos potenciais. “Na cirurgia de ressecção, por exemplo, podem ocorrer danos neurológicos não intencionais, como hemorragia ou infecção, além de ocorrências relacionadas à remoção do tecido cerebral. As sequelas são raras, mas, quando ocorrem, podem causar problemas de visão e déficits cognitivos leves, a exemplo de perda de memória”, comenta o neurocirurgião. Na VNS – por ser um procedimento pouco invasivo –, os principais efeitos colaterais são rouquidão e tosse, que melhoram com o tempo. No geral, ambas as técnicas são muito seguras, com rápida recuperação e retorno às atividades cotidianas, resultando em uma qualidade de vida melhor graças aos bons resultados que essas terapêuticas possibilitam.
Canabidiol – Embora vários fármacos antiepilépticos tenham sido disponibilizados para fins terapêuticos ao longo dos últimos anos, aproximadamente um terço dos pacientes é resistente ao tratamento medicamentoso. Para otimizar melhores desfechos de saúde há uma busca por opções terapêuticas (convencionais e não convencionais) mais eficazes e com menos efeitos colaterais. Com base em inúmeros estudos científicos, o uso medicinal de um dos princípios ativos da planta Cannabis sativa, o canabidiol, tem sido indicado devido à sua eficácia e segurança para atuar na redução de crises. Entretanto, apesar de ser usada há séculos para tratar várias condições médicas, o estigma em torno da planta e as preocupações sobre seus efeitos psicoativos limitam sua aceitação.
Dentre os derivados canabinoides – há mais de 100 conhecidos –, os mais utilizados no cenário medicinal são o tetraidrocanabinol (THC) e o canabidiol (CBD), sendo recorrentes em tratamentos de doenças de ordem neurológica e desordens psiquiátricas. De acordo com a médica neurologista Camila Pupe, professora adjunta de Neurologia da Universidade Federal Fluminense (UFF), no Rio de Janeiro, o CBD é o composto fitoterápico indicado para o tratamento de epilepsias refratárias. “Por não ser uma droga psicoativa, o canabidiol não causa alterações psicossensoriais, tem baixa toxicidade e apresenta boa tolerabilidade em seres humanos, inclusive na faixa pediátrica, destacando-se como uma opção terapêutica com alto potencial para alívio e redução das crises epilépticas”, afirma.
O mecanismo do CBD que pode ajudar a reduzir as crises epilépticas ainda não é totalmente compreendido. Entretanto, acredita-se que afete os receptores do sistema endocanabinoide no cérebro, que estão envolvidos no controle da atividade elétrica e da excitabilidade dos neurônios. Além disso, modula outros sistemas como o dopaminérgico e o gabaérgico, todos envolvidos no sistema nervoso central. A neurologista da UFF destaca que os efeitos terapêuticos indicam que o CBD possui propriedades anticonvulsionante, ansiolítica, anti-inflamatória e analgésica, podendo ter efeito neuroprotetor e modulador do sistema imunológico.
Regulamentado como terapia médica pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), o uso do CBD é autorizado para o tratamento de epilepsias refratárias às terapias convencionais comuns na infância e adolescência, entre as quais a Síndrome de Dravet e Lennox-Gastaut. “Ainda que ofereça benefícios importantes ao paciente, como ajudar a reduzir a frequência e gravidade das crises, alívio no quadro geral de saúde e, consequentemente, uma melhora significativa na qualidade de vida, o uso do CBD não é uma cura para a doença. Portanto, não deve ser indicado como primeira linha de tratamento ou em esquema de monoterapia como único agente terapêutico”, avalia a neurologista.
Administrado por via oral, em forma de óleo ou cápsulas, a concentração e dosagem do CBD variam de acordo com idade, peso, gravidade da epilepsia e condições médicas concomitantes do paciente. A neurologista Camila Pupe enfatiza que a indicação terapêutica deve ser prescrita e supervisionada exclusivamente pelo médico responsável, pois, como toda molécula química ativa no organismo, pode causar efeitos colaterais. “Assim como ocorre com outros compostos fitoterápicos, eventualmente o CBD pode causar sonolência, tontura, fadiga ou alterações gastrointestinais, como diarreia ou náuseas. Em alguns casos que demandam doses muito altas pode ocorrer toxicidade hepática”, acentua.
Prescrição limitada – Para a especialista, a resistência em prescrever o composto fitoterápico de canabidiol é multifatorial e começa no processo de formação dos profissionais da saúde, uma vez que a temática ainda é negligenciada na grade curricular de inúmeras faculdades de saúde do País. Além disso, a médica acredita que exista uma interferência na visão geral que as pessoas têm sobre a cannabis medicinal, cuja resistência está associada principalmente ao preconceito. “A prescrição do CBD é baseada na prática clínica e em inúmeros estudos que corroboram sua segurança, eficácia e benefícios para quadros específicos de saúde. Portanto, pensando no desfecho secundário, que é uma melhora do quadro de saúde global e da qualidade de vida, deve ser considerada como terapia adjuvante ao tratamento convencional”, finaliza.