Córtex pré-frontal recupera funcionalidade

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Compensação cerebral após trauma

Escrito por: Elessandra Asevedo

A área pré-frontal do córtex corresponde à parte anterior do lobo frontal, não motora, e constitui o reflexo mais sofisticado da evolução humana. É nesta região que ocorrem os processos mentais, comportamentais e cognitivos mais complexos. Por exemplo, é responsável pela escolha das opções e estratégias comportamentais, pela manutenção da atenção, pelo planejamento e pelo controle do comportamento emocional e integração social.

Quando lesionado, o córtex pré-frontal pode recuperar a funcionalidade. No entanto, este mecanismo ainda é um mistério. Por isso, é objeto de um estudo científico liderado pelo neurofisiologista brasileiro Renato Rozental, professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e pesquisador do Centro de Desenvolvimento Tecnológico em Saúde (CDTS) e do Laboratório de Comunicação Celular (LCC) do Instituto Oswaldo Cruz (IOC)/Fiocruz, juntamente com colaboradores estrangeiros.

O histórico tem início em 1848, quando Phineas Gage, um ferroviário norte-americano de 25 anos, teve o crânio atravessado por uma barra de ferro, causando danos no lobo frontal. Após o incidente, o paciente apresentou mudanças na personalidade, que foram atribuídas na época a possíveis lesões na região frontal esquerda. Em agosto de 2012, um brasileiro de 24 anos, identificado apenas como E.L., sofreu um acidente semelhante em uma obra de construção civil. O homem foi atingido por um vergalhão que caiu do quinto andar, transfixando o lado direito do crânio e saindo na altura da glabela – o espaço compreendido entre as sobrancelhas.

Para ajudar a desvendar o processo de compensação cerebral após traumatismo do lobo frontal e, assim, abrir caminho para tratamentos médicos mais eficazes, foi realizado um estudo multidisciplinar coordenado pelas equipes de Renato Rozental na Plataforma de Neurociência Translacional (CDTS e IOC/Fiocruz) e no Laboratório de Neuroproteção e Estratégias Regenerativas (UFRJ). O estudo contou com a participação de pesquisadores do Albert Einstein College of Medicine (AECOM) e da New York University (NYU), nos Estados Unidos.

“De igual importância para a formação científica diferenciada de alunos de Pós-graduação (PPGAP/UFRJ, Programa MD/PhD) e de Graduação (Iniciação Científica) no nosso País, o estudo propiciou uma atmosfera intelectual sem precedentes em lesões frontais para os alunos dos nossos grupos”, afirma o pesquisador. Dentre os destaques estão participando os doutores Pedro Henrique M. de Freitas, Tagore M.G. de Morais, Caio Perret, Joana Vicentini, Bárbara Pilon, bem como dos alunos de graduação Victor Bonatti, Lucas de Oliveira e Júlia Valente.

“A vivência e participação em discussões científicas com os Doutores Oliver Sacks (1933-2015) (NYU), Michael VL Bennett (1931-2023) (AECOM), Rodolpho Llinás (NYU), Elkhonon Goldberg (NYU), entre outros, iluminaram uma geração de profissionais e estudantes brasileiros em diferentes fases de suas vidas e culminaram na defesa de uma tese de doutorado realizada com maestria pelo Dr. Pedro Henrique de Freitas no PPGAP/HUCFF/UFRJ”, relata o pesquisador. Com duração de nove anos, o estudo coletou dados do paciente brasileiro que sofreu lesões nessa área, perdendo 11% de massa cerebral total – sob gestão financeira da Layra Scanzi (projetos Fiocruz e UFRJ).

Uma avaliação sistemática de testes clínicos, eletrofisiológicos, de imagem cerebral, neuropsicológicos e comportamentais foi realizada para esclarecer o significado clínico da relação entre a descarga das oscilações eletroencefalográficas de baixa frequência e as disfunções executivas. “De uma forma simples, o eletroencefalograma (EEG) é um exame que avalia a atividade dos impulsos elétricos gerados naturalmente pelo cérebro, examinando a normalidade do seu funcionamento em relação à intensidade e regularidade dos impulsos eletrográficos”, acentua. Isso possibilitou a comparação dos distúrbios observados no paciente brasileiro com aqueles atribuídos ao paciente norte-americano acidentado em 1848, permitindo entender o mecanismo pelo qual o córtex pré-frontal recupera a funcionalidade.

Por dentro do estudo

Desde o episódio, o lobo frontal esquerdo do brasileiro começou a compensar o direito, pois, se o hemisfério saudável não for ativamente utilizado para outra atividade, pode compensar o lesionado. O paciente passou por um teste simples no qual precisava tocar rapidamente com o polegar cada dedo da mesma mão, o que fez sem problemas. Mas, quando precisou fazer com ambas ao mesmo tempo o hemisfério saudável não compensou o hemisfério direito.

De acordo com o professor Renato Rozental, o estudo contribui para a compreensão da atividade elétrica anormal que emerge na área perilesão. Além disso, abre caminho para possíveis tratamentos nos casos em que o cérebro não realiza essa compensação natural. Através de medicamentos e estimulação de ondas cerebrais, é viável induzir um hemisfério a compensar as áreas lesionadas do outro, contanto que as lesões não sejam bilaterais.

“Na área lesionada, observam-se no EEG ondas elétricas lentas de alta amplitude. Ao modularmos essa atividade elétrica anormal presente no hemisfério afetado, conseguimos reduzir a frequência dessas ondas lentas, permitindo que a função executiva da pessoa seja normalizada”, explica o pesquisador. Para confirmar esse processo de espelhamento, foi utilizada a técnica de estimulação magnética transcraniana (EMT), que temporariamente desativa uma área específica do cérebro por meio da estimulação do córtex cerebral.

Dessa forma, quando essa área, que estava controlando a atividade no outro hemisfério, é desativada, diferenças eletrográficas tornam-se evidentes nos registros, e a capacidade funcional do paciente (por exemplo, memória e comportamento) é claramente alterada e mensurada. Essa ‘prova de conceito’ reforça a hipótese de que o hemisfério saudável estava ativamente modulando a área lesionada no hemisfério contralateral.

Segundo o pesquisador, a identificação de respostas compensatórias associadas às oscilações de ondas lentas sobre o hemisfério lesionado facilita a determinação da extensão em que o recrutamento neural na área perilesão contribui para a reorganização ou engajamento funcional das redes latentes existentes, abrindo novas perspectivas para a compreensão do fenômeno de modulação das funções executivas após lesões unilaterais do lobo frontal.

Perspectivas positivas

As descobertas significam que um foco no recrutamento do hemisfério intacto para ajudar na recuperação pode ser uma direção importante para tratamentos clínicos efetivos. Dessa forma, esses tratamentos permitirão a recuperação de funções comprometidas e melhor qualidade de vida para os pacientes. O paciente brasileiro perdeu 11,2% do total da massa encefálica e tem uma vida normal, embora sofra epilepsia pós-traumática, que é plenamente controlada com medicamentos anticonvulsivantes, e não possa mais trabalhar em construção civil.

Entretanto, o paciente E.L. não apresenta declínios no processamento mental, raciocínio moral, comportamento social e familiar, capacidade de resolver problemas diários, capacidade de interagir com seus colegas de trabalho, com familiares ou de agir com eficiência e dignidade como marido, pai e cidadão. “Em resumo, nosso estudo sugere que a modulação da dinâmica das ondas de baixa frequência é um importante mecanismo pelo qual o córtex pré-frontal acomoda lesões neurológicas, apoiando relatos da recuperação do paciente Phineas Gage, um clássico da literatura neurológica, neuropsicológica e psiquiátrica, e representando um atraente novo alvo para intervenções terapêuticas”, pontua o pesquisador. O estudo ‘E.L., a modern-day Phineas Gage: Revisiting frontal lobe injury’ foi publicado em 2022 na revista científica The Lancet Regional Health – Americas.

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