O intestino abriga o maior exército de células imunitárias – linfócitos, macrófagos, células dendríticas –, mais do qualquer tecido linfoide, medula óssea, baço e fígado. A microbiota comensal desempenha um papel fundamental na educação do sistema imunitário, que ocorre muito cedo na vida, e os microrganismos e seus metabólitos modulam as respostas imunitárias através da indução de células imunitárias, vias de sinalização e mediadores inflamatórios. Em contraste, a exposição a determinados gatilhos ambientais, como componentes dietéticos, infecções gastrointestinais, medicamentos, estresse psicológico e tabagismo, entre outros, em indivíduos geneticamente suscetíveis, leva a uma disfunção imunitária associada à disbiose que pode determinar o desenvolvimento de uma série de doenças.
“A maior parte das nossas defesas está concentrada no intestino, logo abaixo do epitélio, que é um filtro muito sofisticado e tem o desafio de nos afastar de um meio nocivo e, ao mesmo tempo, absorver e aproveitar os nutrientes. Do contrário, a vida seria inviável. E as bactérias intestinais fazem parte desse filtro. Não há saúde sem bactérias intestinais”, acentua o professor Heitor Siffert Pereira de Souza. A prova disso é que o modelo de animal germ-free não é compatível com a vida e, por isso, depois de algumas semanas, morre. Estudos já mostraram que isso ocorre porque o camundongo livre de germes tem o intestino estreito, com a mucosa fina e as vilosidades baixas e, consequentemente, não apresenta superfície absortiva adequada para os nutrientes provenientes da alimentação.
Segundo o pediatra imunologista Bruno Paes Barreto, para ter um desenvolvimento imunológico adequado é fundamental ter uma colonização microbiana adequada, que acontece principalmente em nível intestinal. E não é possível dissociar o que acontece no intestino com o que vai ocorrer com os sistemas cerebral, imunológico e metabólico – e toda essa conexão é programada na infância. “O que precisamos entender como médicos é que tudo que se faz na infância vai refletir ao longo da vida. Uma programação imunológica errada nos primeiros 1.000 dias pode se manifestar com manifestações alérgicas; uma programação metabólica errada nesta mesma janela temporal pode se manifestar com obesidade ou síndrome metabólica; assim como uma programação neurológica errada pode se manifestar com transtorno do espectro autista ou com outra alteração comportamental. São situações que precisamos parar para pensar e rever os nossos conceitos”, argumenta.
A professora doutora Ana Maria Caetano de Faria, do Departamento de Bioquímica e Imunologia da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), diretora do Departamento de Ciência e Tecnologia da Secretaria de Ciência, Tecnologia, Inovação e Complexo da Saúde do Ministério da Saúde e presidente da Sociedade Brasileira de Imunologia (SBI), afirma que há vários estudos epidemiológicos mostrando um aumento de doenças autoimunes e alergias, principalmente nos países mais industrializados, e um dos motivos pode estar relacionado com a hipótese da higiene. “Alguns trabalhos mostram que indivíduos que vivem em regiões muito limpas e não têm contato com os patógenos normais da infância têm mais propensão a doenças autoimunes e imunomediadas, exatamente porque essa fase da vida é o período de desenvolvimento do sistema imune. Além de todos os fatores que interferem para a modulação da microbiota, esses patógenos do ambiente também atuam moldando o sistema imune e fazendo com que seja um reforço desses mecanismos imunorreguladores durante a infância”, ensina. Embora sejam doenças de predisposição genética, em alguns indivíduos os sintomas podem ser mais precoces e mais graves, dependendo da microbiota.
Oportunidade
O artigo ‘A microbiota intestinal e sua interface com o sistema imunológico’, desenvolvido por pesquisadores de diferentes instituições no Brasil – incluindo o pediatra Bruno Paes Barreto – mostra evidências robustas na literatura de que a janela de oportunidade para intervenção e prevenção primária de doenças alérgicas, por exemplo, começa antes do nascimento e, provavelmente, ainda no período fetal – incluindo tipo de parto, alimentação nos primeiros meses de vida, fatores ambientais e uso de antibióticos.
O pediatra destaca que essa janela de oportunidade para fazer a modulação microbiana intestinal são os primeiros 1.000 a 2.000 dias de vida, quando a microbiota ainda tem plasticidade e é possível intervir com dieta adequada, probióticos, prebióticos e posbióticos, e menos uso de antibióticos. “Não podemos perder essa janela de oportunidade, mas, infelizmente, nós pediatras, os obstetras e todos os médicos de maneira geral ainda sabemos pouco sobre como, quando e por quanto tempo podemos intervir, porque as ciências ‘ômicas’ são novas e ainda temos muitas lacunas”, lamenta.