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A microbiota intestinal na fibrose cística

Escrito por: Adenilde Bringel

A ­­­­fibrose cística é uma doença autossômica recessiva, genética e rara, que acomete vários sistemas do organismo com destaque para pulmões, pâncreas e sistema digestivo. As crianças também secretam suor mais salgado, por isso, a enfermidade é chamada de doença do beijo salgado. Embora atinja cerca de 70 mil pessoas no mundo, é considerada a doença genética grave mais comum da infância. A fibrose cística é causada por um gene defeituoso, e a proteína produzida por esse gene faz com que o corpo produza muco 30 a 60 vezes mais espesso que o usual. Esse muco espesso leva ao acúmulo de bactérias nas vias respiratórias, podendo causar inflamações e infecções – por isso os danos aos pulmões. Além disso, pode bloquear o trato digestório e o pâncreas, o que impede que enzimas digestivas cheguem ao intestino. Diante das comprovações mais recentes sobre o eixo intestino-pulmão, cientistas investigam se o microbioma intestinal teria algum papel na doença. Além disso, querem entender se uma intervenção com probióticos poderia ser um adjuvante do tratamento tanto para os pulmões quanto para o sistema ­gastrointestinal.

No artigo ‘Cystic fibrosis‑related gut dysbiosis: a systematic review’, publicado em 2023, pesquisadores do Reino Unido sinalizam que a doença está associada à disbiose intestinal, inflamação local e sistêmica e função imunológica prejudi­cada. Segundo os autores, a disbiose resulta de alterações no ­comple­xo ambiente intestinal em resposta à disfunção do regulador de condutância­ ­transmembrana da fibrose cística (CFTR, na sigla em inglês), má absorção pancreática, dieta, medicamentos e influências ambientais. As manifestações pulmonares na fibrose cística ocorrem exatamente por um defeito no transportador de cloro CFTR, que também tem uma relação com o canal de sódio e leva a um déficit de transporte de íons. Por meio de uma pesquisa eletrônica de três bancos de dados, os cientistas incluíram na revisão 38 estudos com humanos, animais e in vitro. A análise mostrou um aumento relativo de bactérias associadas a uma resposta pró-inflamatória, juntamente com uma redução daquelas consideradas anti-inflamatórias. No entanto, estudos que ligam a disbiose intestinal à inflamação sistêmica e pulmonar, assim como os dados sobre o impacto dos moduladores de CFTR na microbiota intestinal, ainda requerem mais ­investigações.

De acordo com a médica assistente da disciplina de Gastroenterologia Pediátrica do Departamento de Pediatria da Esco­la Paulista de Medicina da ­Universidade Federal de São Paulo (­EPM-Unifesp), Marcela Duarte de Sillos, como a maioria das crianças com fibrose cística tem insuficiência pancreática – cerca de 90% desenvolve, muitas vezes, no primeiro ano de vida –, essa condição favorece uma série de alterações ­gastrointestinais que resultariam em modificações da microbiota. “A falta de enzimas pancreáticas resulta em má absorção de nutrientes e reduz o pH duodenal. A gordura não absorvida que permanece na luz intestinal reduz o tempo de trânsito do intestino delgado e contribui para que pacientes com fibrose cística apresentem dismotili­dade”, acentua. Além disso, no paciente com fibrose cística a disfunção da proteína CFTR leva à menor secreção de bicarbonato, produzindo muco com menor conteúdo de água e, portanto, ­anormalmente espesso.

No intestino delgado, o muco – que em condições normais é móvel – fica aderido à mucosa intestinal favorecendo a obstrução da luz intestinal e a permanência de bactérias no intestino delgado. Esse muco espesso aderido à mucosa e o uso frequente de antibióticos e antiácidos são capazes de alterar o microbioma do paciente com a doença desde os primeiros anos de vida, além de favorecer a ocorrência de Clostridium difficile. A médica detalha que a produção de muco também aumenta em consequência da presença de bactérias, facilitando o desenvolvimento de sobrecrescimento bacteriano no intestino delgado. Além deste quadro de infecções intestinais, o paciente com fibrose cística pode desenvolver inflamação da mucosa intestinal. “Este conjunto de características próprias do intestino de pacientes com fibrose cística, agrupado na tríade ‘obstrução, inflamação e infecção’, vem sendo denominado na literatura internacional ‘the CF gut’. Todas as manifestações intestinais da fibrose cística são resultado de um ou mais mecanismos da tríade acima mencionada”, acentua.

A nutricionista Lenycia Neri, pesqui­sadora convidada da Università di Pavia, na Itália, acrescenta que, por não secretar as enzimas digestivas pancreáticas, os nutrientes que a criança consome são mal digeridos e não são absorvidos. “Esses nutrientes intactos no trato gastrointestinal podem fermentar e mudar totalmente a microbiota”, detalha. Por causa disso, a criança tem muita chance de desnutrição e uma propensão a ter déficit de peso ou de estatura. A produção excessiva de muco também faz com que as macromoléculas entupam todos os tubos do organismo e o paciente tem uma tubulopatia obstrutiva generalizada, no corpo inteiro. Uma vez que o ducto pancreático é um desses tubos, pode ocorrer uma obstrução e, consequentemente, a falta de secreção do suco pancreático.

Ileo meconial

Estimativas indicam que, dos bebês com fibrose cística, entre 10% e 15% já nascem com íleo meconial, que é uma impactação de fezes e de muco na região do intestino chamada de íleo ceco. A complicação é comum em pacientes que têm mutações mais graves, e o que ocorre é a obstrução de um trecho do intestino pelo qual não passa alimento. Nesses casos, frequentemente o bebê tem de ser submetido a uma ­ressecção de parte do intestino logo após o ­nascimento. A nutricionista acentua que alguns pacientes, no primeiro ano de vida, também podem ter colonização da bactéria Pseudomonas aeruginosa, que causa infecções, principalmente em pessoas com o sistema imunológico enfraquecido. Por isso, o prognóstico nutricional fica ainda pior.

“É muito difícil controlar a microbiota de um paciente nessas condições. Se essa criança tiver uma mutação onde a função da CFTR é parcialmente mantida, o tratamento tende a ser mais fácil. Agora, se tiver uma mutação com menor ou nenhuma função da CFTR, será tudo mais difícil. É por isso que a equipe multidisciplinar é muito importante no tratamento da fibrose cística”, reforça. Dessa forma, fisioterapeutas, nutricionistas, médicos, assistentes sociais e psicólogos têm de trabalhar juntos, porque o indivíduo com fibrose cística será sempre um paciente que requer muito cuidado.

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