Evitar fatores de risco e estar atento a sintomas de repetição podem reduzir as chances de desenvolver ou agravar as doenças digestivas
Embora a função primária do trato gastrointestinal humano seja atuar no processamento dos alimentos e garantir a absorção dos nutrientes fundamentais para a manutenção do organismo, esse complexo sistema que começa na cavidade bucal e termina no ânus também exerce um importante papel para o desenvolvimento do sistema imunológico, para a produção de energia, para a biossíntese de vitaminas e para a proteção contra patógenos por meio da barreira intestinal. O pleno funcionamento do sistema digestivo exige a adoção de hábitos de vida mais saudáveis, evitando fatores de risco como má alimentação, falta de atividade física, estresse, automedicação e consumo de álcool, entre outros. O descompasso nessas funções pode se apresentar através de sintomas em diferentes graus de intensidade e frequência, que vão de um simples desconforto até enfermidades que merecem mais atenção e tratamento imediato, a exemplo das doenças funcionais, inflamatórias, imunológicas e neoplásicas.
A partir da cavidade oral o sistema gastrointestinal segue pela faringe, área de transição para um longo tubo musculoso com aproximadamente nove metros que é subdividido em esôfago, estômago, intestino delgado (duodeno, jejuno e íleo), intestino grosso (cólon ascendente, cólon transverso, cólon descendente e cólon sigmoide), reto e ânus. “Esse conjunto de estruturas tem suas ações otimizadas por órgãos e glândulas acessórias, como dentes, língua, glândulas salivares, fígado, vesícula biliar e pâncreas, que participam direta ou indiretamente da digestão, absorção dos nutrientes e decomposição química dos resíduos alimentares”, explica o médico gastroenterologista Tomas Navarro Rodriguez, docente de Pós-graduação na área de Gastroenterologia Clínica e chefe do Grupo de Esôfago e Motilidade Digestiva do Serviço de Gastroenterologia Clínica do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (HC-FMUSP). A digestão passa por dois processos: o mecânico, que envolve as etapas de mastigação e deglutição; e o químico, que ocorre com auxílio de enzimas produzidas pelo pâncreas e fígado, e do suco gástrico presente no estômago.
A instabilidade desse complexo sistema pode ocorrer por causa genética, fatores ambientais, desregulação da microbiota intestinal, por um sistema imune comprometido e, inclusive, pelo uso prolongado de medicamentos – especialmente os anti-inflamatórios sem prescrição médica de dosagem ou tempo de uso. Como resposta, o sistema digestivo manifesta sintomas que podem se apresentar em graus de intensidade e frequência de acordo com cada indivíduo e área afetada. “Os sintomas mais descritos na literatura médica são a constipação intestinal, diarreia (em casos mais preocupantes, com sangramento nas fezes), cólicas abdominais, perda de peso sem razão aparente, refluxo, náuseas, vômitos, inchaço e queimação estomacal, entre outros. Quando passam a ser recorrentes e oferecem danos à qualidade de vida, exigem atenção de um especialista”, destaca o gastroenterologista Tomas Navarro Rodriguez. Além de avaliação clínica para identificar a origem dos sintomas, o médico poderá solicitar exames laboratoriais e de imagem para um diagnóstico mais assertivo e tratamento adequado.
Muito prevalentes em todo o mundo e principal causa de consultas ambulatoriais de Gastroenterologia e Clínica Geral, as doenças funcionais do aparelho digestivo formam um grupo de condições que se caracteriza por sintomas relacionados ao comprometimento de qualquer segmento do trato gastrointestinal, superior e inferior, sem que haja evidências clínicas, laboratoriais ou de imagem que identifiquem uma doença orgânica. Embora sua real fisiopatologia ainda seja pouco conhecida, especialistas defendem que uma combinação de fatores psicossociais (estresse e ansiedade) e fisiológicos (motilidade alterada, hipersensibilidade visceral e desregulação da comunicação do eixo cérebro-intestino) sejam responsáveis pelo aparecimento da sintomatologia digestiva. Dentre essas manifestações, as mais comuns são a dispepsia funcional, a síndrome do intestino irritável e a constipação intestinal que, apesar de serem benignas e não evoluírem para formas mais graves, são condições crônicas que demandam cuidado especializado.
As doenças funcionais digestivas foram definidas e classificadas a partir de critérios clínicos específicos (obrigatórios e associados) conceituados como Consenso de Roma – com última revisão em 2016 (Roma IV) –, de acordo com as regiões anatômicas e separadas em seis grupos: esofágico, gastroduodenal, intestinal, dor abdominal funcional, biliar e anorretal. Segundo a gastroenterologista Maria do Carmo Friche Passos, médica do Instituto Alfa de Gastroenterologia do Hospital das Clínicas da Universidade Federal de Minas Gerais (HC-UFMG), esses critérios permitem identificar a doença funcional de acordo com a área da queixa. “O diagnóstico é de inclusão, confirmado quando todos os critérios obrigatórios e pelo menos dois critérios associados estão presentes. Além disso, a abordagem inicial, a história clínica e o exame físico, junto com os exames laboratoriais de hemograma, urina, fezes e, ocasionalmente, glicemia e dosagem do hormônio estimulante da tireoide (TSH), são importantes para validar a identificação ou exclusão de causa orgânica para os sintomas apresentados”, descreve.