Entrevista: A voz do paciente em terminalidade

Fabiana Remédio

Por Adenilde Bringel

 

Morte e finitude da vida são assuntos que ainda geram desconforto na maioria das pessoas, apesar de ser uma condição a que todos estão sujeitos em algum momento desta jornada. No entanto, a enfermeira e pesquisadora Fabiana Remédio acredita que algumas angústias de quem passa pelos momentos finais da vida poderiam ser minimizadas se essas pessoas tivessem registrado as suas vontades em um testamento vital. Este documento, que pode ser registrado em cartório ou no próprio prontuário médico, tem a função de indicar a vontade do paciente de aceitar ou recusar procedimentos, cuidados e tratamentos de saúde caso esteja com uma doença terminal ou com uma enfermidade neurodegenerativa que, em algum momento, não permita que tenha condições de tomar as próprias decisões. A enfermeira, que é autora de uma pesquisa sobre o tema desenvolvida na Escola de Enfermagem da Universidade de São Paulo (EE-USP), em 2023, afirma que o testamento vital representa a autonomia e o direito do paciente a um tratamento digno em seus últimos dias de vida. Além disso, ressalta a importância de as famílias conversarem sobre a finitude que, afinal, é inerente a todos os seres vivos.

O que é exatamente o testamento vital e por que é importante para pacientes em estado terminal?

O testamento vital é um documento que deve ser redigido por escrito, como um registro, com os desejos do paciente em uma fase de terminalidade – lembrando sempre da importância de respeitarmos a autonomia do paciente como indivíduo. Todos temos autonomia para decidir o que queremos na nossa vida. A Constituição Federal nos dá direito de ir e vir e de fazer as nossas escolhas. E a autonomia é uma delas. Mas, quando estamos em terminalidade, muitas vezes não conseguimos decidir como queremos que seja o nosso fim. Portanto, o testamento vital é um documento que o paciente deixará registrado de como quer que seja o final da sua vida quando estiver em um estado irreversível devidamente diagnosticado, em que não terá mais consciência para decidir.

Esse testamento é um documento que qualquer pessoa pode deixar para a sua família, no caso de ser diagnosticado, por exemplo, com um câncer terminal ou com alguma outra doença que possa levá-lo a perder a ­capacidade mental?

Exatamente. Mas, antes de fazer o testamento, o paciente tem de estar com todas as suas capacidades mentais, consciente, orientado e sabendo o que está fazendo. Porque quando o indivíduo já estiver, por exemplo, tomado por uma doença e não tiver com as suas faculdades mentais em dia, o documento não será válido. Por isso, o testamento vital tem de ser feito antecipadamente para que o paciente tenha esse conforto. Este documento impedirá possíveis cenários em que a doença leve o paciente a passar por algo que ele não deseja, por exemplo, procedimentos para mantê-lo vivo sem que isso possa, efetivamente, proporcionar sua cura ou volta à normalidade. O registro pode ser feito em cartório, escrito de forma particular ou ser registrado em um prontuário médico, sempre impresso, assinado e seguindo a vontade expressada pelo paciente enquanto estava em plena capacidade de juízo crítico e de comunicação.

O testamento vital está legalmente previsto no Brasil?

O artigo 5º, inciso 3º da Constituição Federal fala sobre as nossas liberdades de escolha, enquanto o artigo 1º, inciso 4º trata sobre tratamento desumano e sobre autonomia. Portanto, a Constituição Federal deixa muito claro que cada indivíduo pode fazer suas próprias escolhas. Mas, hoje, o testamento vital (com essa nomenclatura) só está previsto por uma resolução do Conselho Federal de Medicina (CFM) – Resolução 1.995 de 2012 –, que dispõe acerca dos tratamentos e das diretivas antecipadas. Somente depois de muito tempo, no Brasil, começaram a falar sobre essas diretivas, e é muito válido que todos conheçam. Atualmente, os cartórios também já estão registrando as diretivas e não é um valor absurdo. Muitos advogados também fazem essa curadoria para que tudo esteja alinhado direitinho, e estão investindo em testamento vital como uma nova especialidade. Entretanto, as famílias sem recursos podem simplesmente deixar esse desejo do paciente registrado no prontuário médico ou de próprio punho, desde que seja impresso e assinado.

“Claro que todos devem viver o seu luto, mas até isso temos de viver em harmonia, pois, quando tudo flui bem, a paz interior prevalece.”

Há uma dificuldade, de forma geral, de se falar em morte. Como quebrar esse paradigma e fazer com que médicos e enfermeiros, principalmente, consigam abordar o assunto?

Sempre digo que nos domingos, na nossa ‘macarronada’ com a família, deveríamos falar sobre morte. Deveríamos comentar com nossos familiares se queremos ser enterrados ou cremados, como queremos nosso velório e, se um dia tivermos uma doença interminável, como desejamos que o tratamento seja direcionado – pensando sempre no conforto de todos. É muito difícil falar sobre morte, mas precisamos quebrar os tabus, pois somos mortais. E acabamos vendo muito, nos hospitais, filhos brigando no leito dos pais porque não conversaram sobre nada disso antes. E ninguém olha o ‘eu’, que é o paciente que está ali no sofrimento, muitas vezes ouvindo tudo – porque mesmo sedado o paciente está ouvindo. Há pessoas que brigam até por herança ali no leito do hospital, o que é um absurdo! Então, este é um assunto que deveríamos conversar com os pais e com os filhos, porque não somos imortais. Por tudo isso considero muito importante conversar nas famílias sobre morte e como cada um deseja que seja a sua finitude, até para ser uma morte tranquila e para que todos fiquem em paz e harmonia, não em sofrimento. Claro que todos devem viver o seu luto, mas até isso temos de viver em harmonia, pois, quando tudo flui bem, a paz interior prevalece.

Por que a senhora resolveu fazer esse estudo com enfermeiros?

Sou formada em Direito e em Enfermagem e gostaria de abordar a bioética no meu mestrado com algum tema que eu pudesse conciliar com minhas graduações, que são excelentes e podem estar juntas . Meu orientador, o professor doutor Marcelo José dos Santos – professor associado (livre docente) do Departamento de Orientação Profissional, coordenador do Programa de Pós-graduação em Gerenciamento em Enfermagem e líder do Grupo de Pesquisa Bioética e Administração: Ensino e Assistência à Saúde da Escola de Enfermagem da Universidade de São Paulo – me acolheu muito bem com essa proposta e sempre esteve presente nas minhas pesquisas. Eu via muitos familiares brigando nos leitos hospitalares e isso me deixava ­muito triste. Além disso, o desejo de muitos pacientes que gostariam de estar em casa na terminalidade não era atendido. Lembro de uma paciente que só queria ir para casa para morrer ao lado do seu cachorrinho. Embora ela estivesse consciente e tenha deixado esse desejo expresso nas diretivas, o médico responsável não permitiu que ela voltasse para sua casa e essa paciente faleceu no hospital, infelizmente. Todas essas situações nos deixam muito frustrados como enfermeiros.

Os enfermeiros são a linha de frente no cuidado com o paciente em terminalidade. Como é a relação do enfermeiro com o testamento vital?

Realmente, o enfermeiro é a linha de frente e quem mais tem contato com o paciente, porque o médico passa uma ou duas vezes ao dia fazendo as prescrições. Mas somos nós que estamos ali o tempo todo cuidando, olhando, escutando, chorando e oferecendo conforto. Por isso, sabemos o que os pacientes falam, o que desejam e como é o sofrimento deles. Muitas vezes, são realmente os enfermeiros que abordam os ­familiares sobre o desejo do paciente, mas as decisões ficam para o corpo médico. E é isso que desencadeia muito sofrimento para a equipe de Enfermagem, porque tentamos amenizar aquele sofrimento abordando a autonomia do paciente, mas é a voz do médico que prevalece. E isso nos causa muita frustração, é um sofrimento moral porque sabemos o que o paciente gostaria que fosse feito, e não é isso que acontece. Entendo que a autonomia do paciente deve prevalecer, porque ele tem direitos, mas não é isso o que acontece na prática.

O testamento vital, uma vez registrado, obrigaria os médicos a atenderem o desejo do paciente ou a família ainda pode reverter essa decisão?

Se o paciente fez o testamento vital e estava com suas faculdades mentais perfeitas, o que prevalece é a vontade do paciente – mesmo que não tenha mais condições por estar confuso ou sedado. Como ainda é uma resolução do CFM, não tem força de lei. No entanto, já está no Congresso Nacional para virar lei. E, a partir do momento que tiver força de lei, será um documento ainda mais potente e, assim, tanto médicos quanto a família terão de cumprir, querendo ou não. Embora os médicos sejam respaldados pelas diretivas do CFM, muitos ainda têm medo de um processo e acabam cedendo à vontade da família, que nem sempre vai ao encontro com a vontade do paciente. Quando tiver força de lei vai ser muito mais fácil cumprir a vontade do paciente em terminalidade.

“Se o paciente fez o testamento vital e estava com suas faculdades mentais perfeitas, o que prevalece é a vontade do paciente – mesmo que ele não tenha mais condições por estar confuso ou sedado.”

Quais foram as percepções dos enfermeiros entrevistados para o seu estudo em relação ao testamento vital?

Muitos já conheciam, outros tinham ouvido falar vagamente. Mas ninguém sabia a fundo do que se tratava e muitos desconheciam que havia uma resolução do CFM e que estávamos respaldados pela Constituição Federal. E esse estudo foi muito bom porque, além de eu ter respostas para as perguntas da pesquisa, também consegui orientar os entrevistados sobre o testamento vital. Uma das questões importantes é que percebi, pelas respostas, que os 15 colegas com os quais conversei tinham as mesmas frustrações que eu sentia quando os pacientes estavam à beira da morte e a família ficava dizendo “vamos fazer isso, vamos investir naquilo”. Vi que realmente é um assunto que tem de ser discutido bastante, porque deixa a área da Enfermagem triste, desiludida. Por isso, é um tema que deve ser mais pautado e a Enfermagem precisa ter uma voz mais ativa para falar com os médicos e com as famílias sobre as diretivas desses pacientes.

A formação dos profissionais da saúde, de forma geral, contempla a terminalidade da vida?

Nos últimos anos estão começando a falar bastante sobre terminalidade e cuidados paliativos, e muitos hospitais estão investindo em cuidados paliativos porque é uma área que está crescendo e é muito abrangente. Mas talvez o debate ainda esteja limitado ao seu conceito e à sua aplicabilidade. Por isso, há um esforço não apenas para a desmistificação de alguns conceitos, mas na necessidade crescente dessa abordagem na formação em saúde. Tem novas doenças chegando e não sabemos, por exemplo, quais serão as sequelas da covid ou se algumas pessoas poderão ter sequelas irreversíveis, porque é tudo muito novo. Tenho ido às escolas de Enfermagem, nas seções da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) e nas faculdades de Medicina para falar de testamento vital. É um trabalho de formiguinha, mas já está começando a dar frutos porque todos os envolvidos estão vendo a importância dessas intervenções para pacientes terminais. As residências e as especializações em cuidados paliativos abrangem bastante esse assunto, mas é preciso ampliar para a formação da área da saúde de modo a contemplar todas as suas necessidades.

Em resumo, o testamento vital propõe que indivíduos em estado de terminalidade tenham o direito de ter um final de vida digno?

Exatamente, é isso que o documento propõe. A Medicina, a Enfermagem e todas as áreas da saúde trabalham para curar as pessoas. Entretanto, temos de estar preparados também para cuidar de quem não pode ser curado. E precisamos saber o limite de tudo isso. Os médicos têm de saber até onde devem investir para manter aquele paciente vivo, assim como a família. E a própria pessoa ­doente tem de conduzir a sua autonomia. Se não podemos curar, vamos dar conforto e deixar aquele paciente perto da família. Se o paciente está em um ambiente acolhedor, com a família e recebendo os amigos; se puder comer algo que tenha vontade, isso tudo fará a diferença. Lembrando que o Brasil é um dos piores países para se morrer, e só perde para Uganda e para a Índia em termos de cuidados paliativos. Infelizmente, ainda não sabemos paliar corretamente. Isso é muito triste e precisamos reverter esses dados. Lembrando sempre que cuidados paliativos, ou seja, paliar não significa uma sentença de morte nem abandono do tratamento, e sim oferecer cuidados que amenizam a dor física do paciente com dignidade, qualidade de vida, disposição e muito carinho.

A senhora afirma no estudo que os ambientes hospitalares podem ser desumanos para pacientes em terminalidade. Por quê?

Sim, infelizmente. Um estudo ouviu 458 pacientes terminais e 75% deles relataram que gostariam de morrer com os familiares em casa, perto do cachorro, perto da flor – teve uma pessoa que relatou que queria morrer perto da sua coruja. No entanto, 66% deles morreram no ambiente hospitalar, ou seja, a maior parte morreu aonde não gostaria. E isso poderia ser diferente se as pessoas pudessem escolher como morrer, deixando sua vontade explícita e ­registrada em um testamento vital. Hoje, já temos alguns programas como o de Saúde da Família e o Melhor em Casa, além de alguns convênios privados que oferecem home care e permitem que o paciente em terminalidade fique com a família no ambiente da sua casa. Os familiares também recebem orientações nos hospitais, temos enfermeiros que vão em casa e vários hospitais oferecem suporte ambulatorial. Mas a família também tem de querer, porque dá trabalho cuidar de um paciente em terminalidade em casa. E a família nem sempre quer o paciente em cuidados paliativos em casa podendo causar desgastes tanto fisicamente como emocionalmente.

O paciente com uma doença grave tem o direito de saber que está em terminalidade, até para tomar decisões importantes?

É uma opção bem individual, mas, na minha opinião, todo paciente tem de saber de seu estado real de saúde para poder organizar a vida e para deixar suas diretivas, seu testamento ou o que deseja em termos gerais de verdade.  Lembrando que o direito de morrer dignamente não deve ser confundido com o direito à morte. Morrer dignamente refere-se ao desejo de se ter uma morte natural humanizada. Morrer dignamente não significa que alguém vai acelerar a morte do paciente, mas sim reconhecer a sua liberdade de escolha.

“Lembrando que o direito de morrer dignamente não deve ser confundido com o direito à morte. Morrer dignamente refere-se ao desejo de ter uma morte natural humanizada. Morrer dignamente não significa que alguém vai acelerar a morte do paciente, mas sim reconhecer a sua liberdade de escolha.”

Como abordar o tema da morte com as crianças?

Sendo sincero, falando de morte de forma serena e natural, sem assustar a criança. Devemos agir como fazem na Europa: eles começam a falar sobre morte e sobre doação de órgãos quando a criança entra na escola, bem cedo. E temos mesmo de falar porque, quando crescem, vão saber lidar com a finitude dos familiares com mais serenidade. Muitos pais falam de papai do céu, de anjinho, de estrelinha, de acordo com o vocabulário da criança, mas temos de falar sobre isso.

Como é possível aceitar a finitude da vida de forma mais leve?

É um assunto bem complexo, mas temos de lidar com isso. Todos vamos passar por isso. Temos de deixar as boas lembranças e viver o presente, viver o agora. Isso faz a diferença quando sabemos que aquela pessoa vai partir. Minha sugestão é viva aquele momento presente, abrace sua mãe, abrace seu pai, abrace seus filhos, esteja perto da família, fale sobre morte com eles, fale sobre quais desejos eles têm para depois que partirem. Isso faz toda a diferença para aqueles que ficam para manterem a paz. Por fim, aceitar a finitude nos ajuda a valorizar cada ­momento e a deixar um legado com significado para os outros. Finitude é a condição humana de ter um fim, de ser limitado e mortal.